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O SOM DO TEMPO ou tudo que se dá a ouvir  /
THE SOUND OF TIME
or everything that gives itself to be heard

©EDUARDO MARTINO

O SOM DO TEMPO  Paço Imperial do Rio de Janeiro, 2021

THE SOUND OF TIME  Imperial Palace  in Rio de Janeiro,  2021

O Som do Tempo ou tudo que se dá a ouvir é uma instalação de badalos de sinos quebrados de dimensões variadas presos às paredes do espaço expositivo. Logo abaixo dos badalos ergue-se uma pirâmide com 1,80m (ou 7 palmos) de terra negra e 50kg de areia dourada, soterrando uma cadeira de alto espaldar. Pela instalação são exibidos três vídeos de 7 horas cada. Cada vídeo traz uma memória a partir da constituição familiar da artista como um microcosmo étnico do povo brasileiro: A memória ouvida e testemunhada: da avó alemã. A memória apropriada construída através dos outros: da avó manauara, que a artista desconhece. E a memória do transe, do delírio.

A instalação transborda as paredes do espaço expositivo quando é ativado pelo som da cidade: todos estes vídeos estão sincronizados aos sinos das igrejas no entorno, a cada hora quando soam os sinos das igrejas ao redor as imagens congelam e emudecem, e às 12:00 hrs. E às 18:00hrs., quando a Ave-Maria é entoada, as imagens e o som se apagam, deixando o espectador frente ao gigantesco aterramento.

O primeiro vídeo apresenta trechos do longa no Paiz das Amazonas de 1921. Produzido por Silvino Santos, primeiro fotógrafo e cinegrafista brasileiro a captar na primeira metade do século 20 importantes e controversos registros visuais da Amazônia. Construindo uma realidade encomendada, o cineasta, ligado às elites locais de comerciantes e governantes, retratou a continuidade da política de colonização do Brasil. Mesmo ignorando questões como o extermínio étnico dos indígenas vistos como entraves ao progresso, Silvino traz imagens da vasta exploração da natureza da região e da mão-de-obra local. O longa, visto hoje como um filme político, foi apropriado e editado pela artista, intercalando seus trechos com imagens de vídeos de outros artistas.imagens reais e oníricas se misturam num devaneio. Seu som, traz o trabalho do artista de Hong Kong, Samson Young, produzido através do prêmio Art Bazel BMW, veiculado na radio Documenta 14, com sinos de 11 países por onde viajou. Uma memória apropriada, construída através do olhar dos outros.

O segundo vídeo apresenta a viagem à Ullersdorf an der Biele* e de minha mãe 20 anos antes. Uma história ouvida e vivida, mas que permanece congelada num tempo romântico.

O terceiro apresenta um pequeno estábulo de animais na Polônia com o teto formado por abóbodas, onde andorinhas fizeram seus ninhos. Imagens de uma memória de transe e delírio.

Ao, através do badalar dos sinos do centro da cidade, sincronizar e relacionar as memórias de sua história pessoal à memória histórica de colonização do país, a artista perverte o tempo cronológico, atualizando e questionando a “evolução” dos projetos de progresso e desenvolvimento adotados.

Apresentado no Paço Imperial do Rio de Janeiro em 2021, antiga residência da Família Real na capital, o projeto tem como destino percorrer o Caminho Real.

 

Por meio de uma obra imersiva, integrada ao espaço a ao entorno, a cada visitante é oferecida uma experiência única, que se transforma ao longo do tempo.

 

“ A exposição  nos trará a oportunidade de presenciar não apenas um trabalho instalativo de arte contemporânea, mas a apreensão de uma experiência singular de montagem de imagens, sons e tempos, num jogo entre memórias pessoais e coletivas, realidade e ficção. Para além do visual ou do sonoro, a mostra é uma experiência para o corpo. Um convite para a vivência não virtualizada do mundo.” 

                                                                                                                                                                          Ivair Reinaldim

*Ullersdorf an der Biele, Silésia, Alemanha, era uma aldeia alemã localizada na Baixa Silésia, hoje não existe mais, chama-se Ołdrzychowice Kłodzkie, e localiza-se em Śląsk, Polônia. Em 1945 toda a Silésia foi ocupada pelo Exército Vermelho soviético, que expulsou a população alemã (4 milhões antes da 2a.Guerra) e assentou poloneses, muitos dos quais também expulsos das áreas anexadas pela União Soviética. A Conferência de Potsdam determinou a fronteira da Alemanha  com a Polônia nos rios Oder e Neisse (linha Oder-Neisse), assim a parte da Silésia a leste dos rios Oder e Neisse foi devolvida à Polônia. As casas da aldeia, divididas entre várias famílias, pertenciam ao Estado e por isso são vagarosamente reformadas. Muitas, por falta de recursos financeiros, ainda estão como deixadas pelas famílias alemãs em 1946. As duas que formavam a fazenda  da minha família são habitadas por mais de 20 famílias polonesas. Em 2014,  diariamente registrei as construções ainda originais, que hoje abrigam entulho e andorinhas.

 O SOM DO TEMPO, 2014-2020

instalação -  9.000kg de terra negra, 100kg de areia dourada, uma cadeira com alto espaladar, corda náutica,  badalos de sinos, 3 vídeos       (420min) projetados.

dimensões variadas

THE SOUND OF TIME, 2014-2020

installation - 9,000 kg of black earth, 100 kg of golden sand, a  high-backed chair, nautical rope, bells clappers, 3 videos (420min) projected.

varied dimensions

The Sound of time or everything that gives itself to be heard is an installation of broken bell jingles of varying sizes attached to the walls of the exhibition space.  Just below the bells is a pyramid with 1.80 meters (or 7 palms) of black earth and 50kg of golden sand, burying a high-backed chair. Throughout the installation three 7-hour videos are shown. Each video brings a memory from the artist's family constitution as an ethnic microcosm of the Brazilian people: The heard and witnessed memory: of the German grandmother. The appropriate memory constructed through others: of the grandmother from Manaus, whom the artist does not know. And the memory of trance, of delirium.

The installation overflows the walls of the exhibition space when it is activated by the sound of the city: all these videos are synchronized to the bells of the surrounding churches, every hour when the bells of the surrounding churches ring the images freeze and become silent, and at 12:00 hrs. And at 6:00 pm, when the Hail Mary is intoned, the images and sound fade out, leaving the viewer in front of the gigantic grounding.

The first video presents excerpts from the 1921 feature film Paiz das Amazonas. Produced by Silvino Santos, the first Brazilian photographer and cinematographer to capture important and controversial visual records of the Amazon in the first half of the 20th century. Constructing a commissioned reality, the filmmaker, linked to the local merchant and ruling elites, portrayed the continuity of Brazil's colonization policy. Even ignoring issues such as the ethnic extermination of the indigenous people seen as obstacles to progress, Silvino brings images of the vast exploitation of the region's nature and local labor. The feature, seen today as a political film, was appropriated and edited by the artist, interspersing its excerpts with images from other artists' videos. Its sound, brings the work of Hong Kong artist Samson Young, produced through the Art Bazel BMW award, broadcasted on the Documenta 14 radio station, with bells from 11 countries where he traveled. An appropriate memory, built through the eyes of others.

The second video presents the trip to Ullersdorf an der Biele* and my mother's 20 years earlier. A story heard and lived, but which remains frozen in a romantic time.

The third video presents a small animal barn in Poland with a vaulted ceiling, where swallows made their nests. Images of a memory of trance and delirium.

By synchronizing and relating the memories of her personal history to the historical memory of the country's colonization, the artist perverts chronological time, updating and questioning the "evolution" of the adopted projects of progress and development.

Presented at the Imperial Palace in Rio de Janeiro in 2021, the former residence of the Royal Family in the capital, the project is intended to travel the Royal Way.

 

Through an immersive work, integrated into the space and the surroundings, each visitor is offered a unique experience, which transforms over time.

 

"The exhibition will bring us the opportunity to witness not only an installation work of contemporary art, but the apprehension of a singular experience of montage of images, sounds, and times, in a game between personal and collective memories, reality and fiction. Beyond the visual or the sonic, the show is an experience for the body. An invitation to the non-virtualized experience of the world." 

                                                                                                                                                                          Ivair Reinaldim

*Ullersdorf an der Biele, Silesia, Germany, was a German village located in Lower Silesia, today it no longer exists, it is called Ołdrzychowice Kłodzkie, and is located in Śląsk, Poland. In 1945 all of Silesia was occupied by the Soviet Red Army, which expelled the German population (4 million before WW2) and settled Poles, many of whom were also expelled from the areas annexed by the Soviet Union. The Potsdam Conference determined Germany's border with Poland at the Oder and Neisse rivers (Oder-Neisse line), so the part of Silesia east of the Oder and Neisse rivers was returned to Poland. The village houses, divided among several families, belonged to the state and are therefore slowly being renovated. Many, for lack of financial resources, are still as left by the German families in 1946. The two that formed my family's farm are inhabited by more than 20 Polish families. In 2014, I daily recorded the still original buildings, which now house rubble and swallows.

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Múltiplo

O Som do Tempo, 2018

Badalo de sino quebrado, redoma de vidro, arame dourado, areia dourada

Edição de 50 unidades + 10 P.A.

Numerado e assinado

Multiple

The Sound of Time, 2018

Broken bell clapper, glass dome, golden wire, golden sand

Edition of 50 units + 10 P.A.

Numbered and signed

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©JULIANA FIONI

TEXTOS/ TEXTS

O som do tempo / Ursula Tautz

Logo de início, cabe um alerta: este texto foi escrito previamente à montagem e abertura da exposição O som do tempo. As palavras que se seguem partem de um exercício de visualização imaginativa – antes da instalação ganhar corporeidade no mundo –, por meio de diálogos com a artista e do contato com inúmeros fragmentos que acompanharam a pesquisa que deu origem à obra: textos, relatos, fotografias, croquis, trechos de vídeos. Assim, a experiência direta, esta que acontece a partir da inauguração da mostra, só me será possível depois que este texto estiver finalizado.

 

Ou seja, assumo o desafio de apresentar um trabalho a partir daquilo que ele possivelmente virá a ser, assinalando alguns de seus aspectos estruturais e/ou conceituais. Não objetivo esgotá-los e muito menos endossar uma abordagem analítica conclusiva, uma vez que toda obra possui abertura e, frente à complexidade inerente a esta instalação, a experiência direta – tanto a minha, quanto a de todas as pessoas que a presenciarem –, evidenciará novas camadas de significação e interpretação, não necessariamente previstas em um projeto.

 

O som do tempo parte de uma ampla investigação de Ursula Tautz, desde aquela que a artista realiza em busca das origens de sua família à intenção de reunir fragmentos diversos, recolhidos ao longo de um período de mais de sete anos, acerca do imaginário relacionado aos sinos. Soma-se a isto, entre a proposta inicial e a sua concretização, a pausa imposta pela pandemia ainda em curso – condição que por si só, para a artista e para todos nós, recoloca uma série de indagações e perspectivas –, prolongando ainda mais seu tempo de maturação.

 

Como um primeiro apontamento, ao investigar “som” e “tempo”, colocando esses dois termos em relação, ressalto que a artista não pretendeu partir da propriedade física dos sons de se propagarem no tempo (e no espaço), mas propor uma experiência temporal como percepção subjetiva, a partir do registro sonoro-visual. Ou melhor, uma experiência de cruzamento entre diferentes temporalidades: o tempo cronológico e o tempo não cronológico, o tempo histórico e o tempo da memória, o tempo compartilhado e o tempo apreendido subjetivamente.

 

Partindo dos sinos, podemos pensar em como suas diferentes sonoridades marcaram acontecimentos no passado – nascimentos, velórios, festas religiosas, pestes, rendições e o fim de guerras – e são ainda recorrentes em geografias e culturas diversas. Isto em um passado longínquo, em um tempo não tão distante e ainda na atualidade, seja em pequenas cidades ou no centro do Rio de Janeiro, quando os sinos das igrejas próximas ao Paço Imperial marcam a constante passagem das horas, mas também o Ângelus na liturgia do catolicismo. Múltiplas camadas de tempos, descontinuidades e recorrências.

 

Outra observação se refere à instalação como uma montagem de fragmentos aparentemente desconexos, seja por aproximação, justaposição, sobreposição. Nesse procedimento, diferentes materialidades e linguagens se coadunam em um propósito mais ou menos comum, produzindo uma experiência de suspensão, no tempo e no espaço, mas que é interrompida em diferentes momentos pelos indícios da realidade advindos do lugar que a obra ocupa: a arquitetura do Paço Imperial, os ruídos do tráfego da Rua Primeiro de Março, ao lado, e o badalar dos sinos das igrejas no centro do Rio de Janeiro.

 

Entre esses fragmentos, podemos listar os inúmeros badalos soltos, distribuídos pelo espaço expositivo; a pirâmide de terra negra e areia dourada, que soterra parte de uma cadeira; o vídeo que registra a viagem que a mãe da artista fez, há mais de 20 anos atrás, à antiga cidade alemã Ullersdorf an der Biele (incorporada ao território polonês, desde o final da Segunda Guerra, com o nome de Ołdrzychowice Kłodzkie); o registro recente de um estábulo na Polônia, onde andorinhas fizeram seus ninhos; trechos do longa metragem No Paiz das Amazonas (1921), de Silvino Santos, instrumento tanto de exaltação política das elites quanto da exploração da natureza e da mão de obra na Amazônia brasileira; a música Such Sweet Thunder (2015), do artista e compositor Samson Young, que registra o som de sinos em diferentes partes do mundo; a presença da luz direcionada, em contraste com a luz projetada pelos equipamentos e a penumbra no espaço expositivo. Quando todos esses elementos são acionados simultaneamente, configuram um regime de ficção, como se diante de nossos corpos houvesse um filme desmembrado no espaço e no tempo, que só pode ser apreendido pelos deslocamentos – físicos, mentais, imaginativos – de quem pretende “assisti-lo”.

 

Por fim, entre registros familiares da artista, que se reportam à avó alemã, e registros ficcionais, que simbolizam indiretamente a existência da avó manauara, a quem não conheceu, entre a materialidade dos sinos e os registros dos sons por eles produzidos, entre índices de poder e de violências diversas, a instalação produz torções entre memórias pessoais e coletivas, vestígios da passagem do tempo e a persistência de imagens e histórias, a visão romantizada e a ideologia do progresso, o som do sagrado e o soterramento do aqui-agora. Confundem-se, assim, registro e ficção, testemunho e imaginário.

 

Talvez a vivência da instalação possa dar a vislumbrar uma percepção contrária: a da dificuldade enfrentada na experiência de escrita deste texto, de narrar aquilo que ainda não existe concretamente no mundo. Como vislumbrar uma obra que se dobra sobre si mesma, que produz uma suspensão por meio do estímulo simultâneo dos sentidos, mas que ao mesmo tempo se abre para algo literalmente fora dela, quando esta suspensão vez ou outra é dissolvida por aquilo que nos retorna à realidade cotidiana? Entre imaginar e vivenciar, há uma distância. Eu ousaria dizer que é disto que trata a artista. Quando os sinos dobram, o que nos sobra é a consciência de nossa própria condição humana.

 

Ivair Reinaldim

curador

Ó sino da minha aldeia,

 

Por mais que me tanjas perto

Quando passo, sempre errante,

És para mim como um sonho.

Soas-me na alma distante.

 

(Ó sino da minha aldeia – Fernando Pessoa)

 

SINO. Sua etimologia deriva do latim signus, sinal, marca, indicação, símbolo. Desde a Idade Média, os sinos estão presentes no mundo ocidental, na marcação dos ritos católicos. Suas origens remontam às necessidades primárias dos seres humanos: a comunicação através do som.         

Nos usos rituais, a origem do instrumento recua ao ano II a.C., no Egito Antigo. Seu formato de campânula circular, tal qual o conhecemos, foi criado na China no século V a.C., quando foi sintetizada a sua fórmula básica, quatro partes de cobre pra uma de estanho. Nas práticas budistas e taoistas os sinos são instrumentos essenciais nos rituais de meditação e devoção, além de serem objetos de estudo na teoria musical, devido a sua precisão e amplitude sonora.

Na Idade do Ferro da África Meridional (2.000 a.C.) sinos foram encontrados nos diversos reinos da África do Sul, Zimbabué e Zâmbia, os instrumentos eram utilizados para anunciar a chegada dos reis. No candomblé, originário das tradições iorubás, o adjá é uma espécie de sineta de metal para uso exclusivo dos sacerdotes e  têm como função evocar os orixás e provocar o transe.

A religião católica elegeu o sino como dispositivo central para o exercício de seu controle entre o sagrado e o profano. A regra beneditina (529-543) e a difusão do monasticismo, instaurou   normas para os atos religiosos, ordenando o cotidiano a partir dos toques do sino.

O sino é considerado uma das primeiras grandes inovações tecnológicas. Seus toques, durante séculos, foram  predominantes na marcação das horas e seus intervalos, ditando o fazer cotidiano, ordenando a mobilidade urbana, o tempo externo da vida coletiva e o tempo interno do recolhimento domiciliar. Nos usos profanos, durante as guerras e pandemias, os sinos indicavam o toque de recolher, avisavam sobre a chegada de tropas inimigas e bombardeios, e alardeavam incêndios e catástrofes.

 

Em Portugal, a primeira referência da utilização do sino é do ano de 870. A produção de sinos na Península Ibérica, com forte presença de mestres sineiros espanhóis, se desenvolveu ao longo dos séculos XIV ao XVI. Nas tradições sineiras artesanais, a feitura do sino seguia um processo minucioso e pesado, devido às dimensões e volume do objeto e seus moldes. Até que o nascimento do sino ocorresse, o dispositivo permanecia enterrado por um tempo até esfriar, emergir da terra, ser polido e ornamentado, quando pronto, era içado para o campanário.  

Objeto enigmático, o sino é personificado a partir de um ritual de consagração, são “batizados” e nomeados, é o único utensílio autorizado pelo Vaticano a receber tal consagração.

O sino possui uma espacialidade monumental, seu som se propaga em ondas, em diversas direções, de natureza acústica complexa, o sino é projetado para os efeitos de concentração e difusão sonora ampla, reverberando sem cessar, até a sua última vibração.

 

Rio de Janeiro: entre sons e silenciamentos

 

 A transferência da Corte portuguesa e a instituição da nova sede monárquica no Rio de Janeiro em 1808, redefiniu o eixo do poder colonial e inseriu a cidade na crise geopolítica instaurada na Europa. Reinventar e reinaugurar um império no Brasil era a solução, a despeito de desacordos e interesses, a decisão extraordinária configurou um projeto de poder do qual somos herdeiros.

O Largo do Paço, atual Praça XV foi o palco escolhido para o espetáculo. Ladeado pela Capela Real, a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmo e a Igreja de Santa Cruz dos Militares. A cidade colonial, suja e insalubre, foi alvo de projetos, reformas, desmontes e aterramentos, com o intuito de adequá-la a um processo civilizador particular.

Entre a violência e o controle, as festas da realeza e seus rituais de reafirmação do poder eram momentos de coesão forçada em um mundo fragmentado e deslocado, um mundo em exílio, tanto para a corte, como para os africanos escravizados. A Igreja era o centro unificador do tempo político com o tempo religioso. Desde o século XVI, os jesuítas instauraram um novo mundo para os povos indígenas, exilados de sua própria cultura, foram forçados a adotar a religião católica, obedecendo regras e ritos estrangeiros, desaparecendo em seu próprio território. No centro desta empresa, no movimento de imposição da cultura do branco europeu, um dispositivo se destacava, o sino: marcação  sonora ritmada, repetida e regular, com a função de acionar o tempo, a  atenção e a obediência, além de preparar os cinco sentidos para a liturgia. O sino era a interface entre o sagrado e o poder, no regime de verdade imposto pela religião católica e a monarquia, seu toque determinava quais os enunciados e comportamentos deveriam ser seguidos, por quanto tempo e em quais territórios.

Sacro e profano – usos do sino no Brasil

Durante muitos séculos, nas áreas rurais, os sinos foram os mediadores entre o céu, o tempo e os usos da terra. Elemento da paisagem arquitetônica e cultural, o sino é o personagem central de diversas lendas. Em tradições originadas na Idade Média, os toques dos sinos avisavam a chegada de tempestades, é comum lermos em seus corpos a inscrição fugo fulmina, ventos dissipo.

Santos católicos e entidades encantadas afro-brasileiras também são personagens de histórias e lendas com os sinos. Santa Ágata é considerada padroeira dos sineiros, devido ao formato de seus seios cortados, semelhantes às campânulas, após terem sidos arrancados a ferro; sinetas de metal, agitadas em nome Santa Bárbara, afastam os maus espíritos, ela é padroeira da metalurgia e é evocada contra raios e tempestades.

A herança dos tambores  africanos se faz sentir na rítmica  dos toques dos sinos, no  Brasil colônia, muitos sineiros eram escravos ou mestiços. Em Minas Gerais, o legado  da cultura de matriz africana está presente nos nomes dados às batidas dos sinos, barravento, batucada e repique de cabeça, toques correspondentes aos dos atabaques do candomblé.

Exu, o orixá da comunicação entre os mundos, silenciado e ressignificado pelo sincretismo, na Umbanda transfigura-se em Seu Tranca-Rua, o qual é convocado pelo ponto onde o sino demarca o tempo encantado: O sino da Igrejinha faz Belém-Blém-Blóm/ Deu meia-noite, o galo já cantou/Seu Tranca-Rua que é dono da gira/ Ô corre gira, pai Ogum mandou… A apropriação do sino pelas religiões afro-brasileiras, subverte seus usos consagrados na invocação de uma entidade da rua. Um tempo alternativo é firmado sob o comando de Ogum, orixá da guerra e do ferro, com o qual   podemos estabelecer a correspondência entre seus atributos e o sino.

No tempo linear do catolicismo, outro momento de suspensão ocorre na Semana Santa, quando os sinos silenciam para lembrar o luto pelo Cristo morto, o tempo e o ritmo da vida cessam até o domingo, quando os sinos repicam festivos pela Ressurreição.

Ao longo da história, entre usos e significados diversos, o sino permanece um enigma. Usados como marcadores cronológicos, indicadores de intervalos da memória e do silêncio, os sinos eternizam os sons do tempo, do espaço-tempo coletivo.

LUCIANA MUNIZ

HISTORIADORA

 

 

 

Referências bibliográficas:

BAUDOT, Jules. Les cloches. Paris: Librarie Bloud & Cie., 1913.

CORBIN, Allain. Les cloches de la terre. Paris: Éditions Albin Michel, 1994.

COSTA, Paulo Ferreira da. Sons do tempo: Usos sociais e simbólicos do sino na cultura popular. In. O Sino: Voz da Aldeia, Voz de Deus. Revista Sítios e Memórias, Porto,1997.

IPHAN. O Toque dos Sinos e o Ofício de Sineiro em Minas Gerais: tendo como referência as cidades de São João del-Rei, Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, Congonhas do Campo, Diamantina, Sabará, Serro e Tiradentes. Coordenação, Yêda Barbosa. Brasília, DF: Iphan, 2016.

NASCIMENTO, Flávia Brito do. Praça XV do Rio de Janeiro como Patrimônio cultural. História e materialidade em disputa. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.14, 2018, p.297-324.

PRANDI, Reginaldo. Exu de mensageiro a diabo, sincretismo católico e demonização do orixá.   REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 46-63, junho/agosto 2001.

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